quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Conhecendo a sombra - e aprendendo com ela



    
    Escrevo de uma manhã peculiarmente fria e cinzenta de fevereiro - depois de dias de calor intenso meu corpo e mente agradecem profundamente. Lá fora um céu nublado e pálido cobre toda a cidade e parece mesmo com um dia de inverno. Acho que esse é o momento ideal para falar sobre sombras, não por qualquer  apelo estético, pelo lugar comum que associa o assunto com o clima sorumbático (sempre quis usar essa palavra), mas porque este momento convida à uma sobriedade adequada para o assunto. Embora o autor não tenha pulado carnaval ou  cometido exageros a sobriedade ainda é muito bem-vinda. 
Ontem terminei de ler A Wizard of Earthsea (Um Mago de Terramar), de Ursula K. Le Guin. Creio que foi traduzido para o português como O Feiticeiro de Terramar, mas independente de como encontrar o título recomendo vigorosamente a leitura. Há muito tempo conhecia Le Guin como uma das grandes autoras de fantasia e ficção científica, na verdade a única autora que sabia ter escrito títulos reconhecidos no gênero. Li comentários dela sobre literatura fantástica, uma tradição que hoje talvez já desfrute de algum respeito, mas que a sua época era tida como uma literatura menor, adequada apenas para entreter crianças e jovens adultos, sem qualquer possibilidade de levar experiências profundas ao leitor. Também assisti a algumas entrevistas dela e discursos em que ela expressou seu repúdio a mentalidade capitalista que invadiu o fazer literário, estendendo sua crítica a presença do capitalismo em todas as esferas de nossas vidas e clamando por uma revolução interior em leitores e autores - mais tarde descobri suas tendências anarquistas e isso só aumentou meu interesse por ela. 

Ler e ouvir palestras e entrevistas de uma autora, por mais agradável e informativo que possa ser, não basta. Procurei por seus livros e encontrei, em versão digital, a coleção The Books of Earthsea, com todos os romances de sua série mais conhecida. Um Mago de Terramar (ou O Feiticeiro) é o primeiro desta série, originalmente publicado em 1968.

    Trata-se de uma história profunda sobre crescimento e autoconhecimento, mas para que essa profundidade possa ser obtida é necessário despir-se de quaisquer expectativas a respeito destes temas. Não sei como é a recepção deste livro nos dias de hoje para um público genérico - um que não seja fã de literatura fantástica - mas tendo a imaginar que se fosse lançado hoje não teria um impacto ou apelo tão grande em virtude da forma como os temas de fantasia evoluíram e também, ainda que esse não seja um fator tão evidente para a obra, como os livros de auto-ajuda acabaram se estabelecendo, tanto nas estantes quanto nas mentes. 

    Um Mago de Terramar conta a história de como um jovem camponês veio a se tornar um grande mago, depois de ter passado um longo tempo em uma academia de magia e ter enfrentado um ser maligno que ameaçava sua vida e a de todos em sua volta mas que ao mesmo tempo compartilhava com ele uma ligação muito íntima. Tenho certeza que a história de um outro jovem mago passou pela sua cabeça, mas perceba: esta é uma descrição muito ligeira e pobre da obra de Le Guin, e esta obra foi escrita em 1968.

Ursula K. Le Guin em 1970.



    Os temas de crescimento e autoconhecimento se dão de maneira muito sutil, não são seus objetivos mas sim consequências naturais de uma história sobre um jovem que precisa conhecer mais sobre o poder que carrega e o destino que lhe aguarda. Le Guin revela, ao fim do livro, que essa foi uma obra solicitada por seu editor, que queria uma fantasia voltada ao público infanto-juvenil, logo pode -se imaginar algum esforço da autora em tratar a obra de maneira que este temas pudessem estar presentes, mas este não é "mais um" livro infanto-juvenil. Não consigo classificá-lo assim, embora seja muito adequado para o público, mas sim como uma obra de fantasia completa, que pode ser lida por qualquer pessoa em qualquer momento de sua vida. 

    Le Guin era leitora de Tolkien e isso pode ser percebido em sua obra. A maneira como ela elabora a história e a geografia de Terramar (Earthsea) revela a influência do professor, mas Le Guin oferece coisas novas, como cenários e personagens não tradicionais e um foco diferenciado nos elementos fantásticos. Os cenários de Terramar parecem pertencer a um clima mediterrâneo e muito ligados a uma vida marítima: há muitas ilhas, barcos e pescadores. Os personagens são, em sua maioria, pessoas morenas e negras e cultura e linguas dos povos de Terramar é muito variada. A magia não é um elemento estranho para os seres deste universo, é comum que magos e feiticeiros prestem serviços a aldeias e na tripulação de navios, mas o seu domínio só pode ser exercido por aqueles que se dedicam a  estudá-la e principalmente por aqueles que tenham a capacidade de falar uma língua antiga e que conheça "o verdadeiro nome das coisas" - isto para mim foi o mais fascinante: uma ligação íntima de magia e linguagem. 

    Particularmente estou muito feliz de ter conhecido este livro neste momento de minha vida. Mencionei sombras no começo deste post, e acho que chegou a hora de começar a falar um pouco sobre elas.