Dormir à tarde, ou em horários não habituais, não é algo muito comum para mim e talvez por isso a soneca guarde efeitos, e um significado, tão marcantes. O sono inesperado, principalmente no meio da tarde, parece uma espécie de purgação, um evento que varre toda minha existência pra longe, numa confusão de imagens. O sono inesperado parece depositar em mim toda a imensidão do tempo, o que é expressão infeliz pois, como mencionei, tudo é varrido, destruído: minha noção de tempo, de espaço, de mundo, de eu.
Sinto os efeitos da soneca antes que ela se instale: a sonolência vem devagar, cantando melodias estranhas e deixando todas as imagens turvas, tudo em um ritmo muito suave e sedutor. Não percebo quando tudo se dissolve, mas consigo perceber quando estou nesse mar vibrante de memória e sonho. Parece mesmo ser o lar, ou a própria substância do que os deuses são feitos. Nesse não-lugar testemunho o verdadeiro teatro dos mistérios, sussurros me ensinam sobre o que parece estar além da existência e antes que eu possa tomar nota volto ao peso moribundo do corpo no sofá.
O grande deus Pã dos gregos ficou conhecido como o deus da vida selvagem, mas poucos lembram que ele também era o deus da soneca. O sono vespertino era uma ponte entre ele e seus devotos.
Hoje tive uma destas sonecas. Deitei-me e fiquei olhando para um grande céu acinzentado que logo se estendeu como um tapete que cobria todo o universo, onde as gárgulas do sono se multiplicavam até que tudo se transformasse em uma espécie de caos sereno. Acordei ainda muito sonolento (ainda estou) e com um poema de Jarod K. Anderson.
Caldeirão.
Um dia crânio estará tão vazio quanto uma concha pendurada em uma cerca,
cheia de vento, calma e parada.
Hoje,é um caldeirão de fantasmas.
Carne e eletricidade.
Água e memória.
Uma máquina que faz a realidade.
Agora.
Aqui.
Seu crânio é o jardim onde os fatos florescem
em significado.
Amo este poema desde o primeiro momento em que o li. Tão vivo, tão pulsante. Fala de um mistério que, na verdade, não é mistério nenhum. Um mistério que só o é porque tendemos a nos perder nos pensamentos, nos medos, nos desejos. Porque esquecemos de respirar.
É bom estar com o caldeirão cheio de fantasmas. É bom nadar em água e memória.
Ser uma criança da ilusão.