terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Soneca, fantasmas e ilusão




Há poucas coisas tão preciosas quanto a soneca. A afirmação soa esquisita porque subestimamos o poder e o alcance disso que, tenho certeza, é um portal poderoso dos mistérios humanos. Até o nome que escolhemos aqui não é adequado. "Soneca", algo  para criancinhas ou adultos cansados. Temos o mesmo se pensarmos em cochilo. Se falarmos de pestana, sesta e madorna soaremos arcaicos e quero demonstrar o quanto isso é presente e vivo. Por mais diminutivo que o seja, fiquemos com soneca.

Dormir à tarde, ou em horários não habituais, não é algo muito comum para mim e talvez por isso a soneca guarde efeitos, e um significado, tão marcantes. O sono inesperado, principalmente no meio da tarde, parece uma espécie de purgação, um evento que varre toda minha existência pra longe, numa confusão de imagens. O sono inesperado parece depositar em mim toda a imensidão do tempo, o que é expressão infeliz pois, como mencionei, tudo é varrido, destruído: minha noção de tempo, de espaço, de mundo, de eu. 

Sinto os efeitos da soneca antes que ela se instale: a sonolência vem devagar, cantando melodias estranhas e deixando todas as imagens turvas, tudo em um ritmo muito suave e sedutor. Não percebo quando tudo se dissolve, mas consigo perceber quando estou nesse mar vibrante de memória e sonho. Parece mesmo ser o lar, ou a própria substância do que os deuses são feitos. Nesse não-lugar testemunho o verdadeiro teatro dos mistérios, sussurros me ensinam sobre o que parece estar além da existência e antes que eu possa tomar nota volto ao peso moribundo do corpo no sofá. 

O grande deus Pã dos gregos ficou conhecido como o deus da vida selvagem, mas poucos lembram que ele também era o deus da soneca. O sono vespertino era uma ponte entre ele e seus devotos.


Hoje tive uma destas sonecas. Deitei-me e fiquei olhando para um grande céu acinzentado que logo se estendeu como um tapete que cobria todo o universo, onde as gárgulas do sono se multiplicavam até que tudo se transformasse em uma espécie de caos sereno. Acordei ainda muito sonolento (ainda estou) e com um poema de Jarod K. Anderson.


Caldeirão.

Um dia crânio estará tão vazio quanto uma concha pendurada em uma cerca,

cheia de vento, calma e parada.


Hoje,

é um caldeirão de fantasmas.

Carne e eletricidade.

Água e memória.

Uma máquina que faz a realidade.


Agora.

Aqui.

Seu crânio é o jardim onde os fatos florescem

em significado. 


Amo este poema desde o primeiro momento em que o li. Tão vivo, tão pulsante. Fala de um mistério que, na verdade, não é mistério nenhum. Um mistério que só o é porque tendemos a nos perder nos pensamentos, nos medos, nos desejos. Porque esquecemos de respirar. 

É bom estar com o caldeirão cheio de fantasmas. É bom nadar em água e memória.

Ser uma criança da ilusão. 

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