quarta-feira, 16 de junho de 2021

Um dia qualquer na razão de ser

Paulo Leminski




Há coisas que nos visitam de tempos em tempos.  Coisas tão absurdas e tão bem escondidas, mas quando surgem escorrem quentes pelo rosto e te fazem sentir nú no meio da avenida. Aahh...as memórias dos cringes passados, sempre dispostos a aparecer quando você estava se sentindo tão bem consigo mesmo. Tenho pra mim que eles se escondem no mesmo lugar das mágoas e dos traumas, que nada mais são que cringes gordos, que abocanharam uma parte considerável de memória e de vida; e seguem mastigando até que a gente pare de dar comida.


Falar de cringes talvez seja mesmo uma maneira de exercitar o olhar sobre si, aprender sobre erros e,  se formos mesmo bons nesse joguinho,  talvez a gente até consiga aceitá-los, mas hoje o que me leva a escrever são aquelas coisas que  que estão lá o tempo todo, mas a gente esquece. Ou pior: só fingimos não existir.


Conheci um homem que queria muito ser dono de um restaurante, mas acabou sendo motorista de ônibus; uma mulher que queria ser agrônoma, mas só lhe sobrou ser professora de geografia. Há pessoas que anseiam pelo seu estúdio de tatuagem ou um simples estúdio de desenho, pelos conhecimentos do chef (e uma cozinha equipada), ver uma história acabada. Conheço muitas pessoas.


Elas acabam trocando de lugar algumas coisas: fazendo o risotto italiano com ingredientes sem nacionalidade; assistindo Netflix ao invés de terminar o capítulo. Essas...coisas, tratam como uma vontade de comer algo específico: se queremos creme de avelã nos contentamos com brigadeiro. Como eu poderia dizer que está errado? Quem sou eu pra dizer que está?


Mas não tenho a coragem de dizer que está certo.


Não fomos educados a negar sonhos altos ou a sonhar baixo. Algo pior aconteceu.


Nos contaram que jamais poderíamos pagar por qualquer sonho. 


A tragédia é que acreditamos.


Felizmente ainda dá pra acordar.