terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Sonhos e incertezas

"Medo e ansiedade são os estados psicológicos  mais dominantes da mente humana. Por trás do medo existe um constante anseio de estarmos com a certeza. Temos medo do desconhecido. O desejo da mente pela confirmação tem suas raízes em nosso medo  da impermanência. 
O destemor é gerado quando você consegue apreciar a incerteza, quando você tem fé na impossibilidade destes componentes interconectados permanecerem estáticos e permanentes. Você vai se deparar consigo mesmo, de uma maneira muito verdadeira, se preparando para o pior enquanto se permite para ao melhor."

Khyentse Norbu Rinpoche 
What Makes You Not a Buddhist (Shambhala Publications)

Sempre procuro evitar os clichés. Aprendi que são sinônimos de cafonice e incompetência, algo tão indesejável para quem lê um texto quanto espalitar os dentes à mesa. Mas veja, evitar isso  é um sinal de medo, medo de ser cafona e incompetente, e aqui escrevo justamente sobre viver sem medo (ou seria não ter medo de sentir medo?). Então com o peito aberto cometo este cliché que tanto temia há quatro linhas atrás: a vida é muito curta. 

Atualmente estou trabalhando em duas histórias, ambas fantasias protagonizadas por meninas. A primeira delas me surgiu numa noite, durante a semana de final de ano, quando passeava em Sarandi, uma cidade que eu adoro. A noite quente de verão convida a passeios, então saímos em família em busca de sorvetes e açaí. Durante a caminhada Ana, minha cunhada de 7 anos de idade, olhou para uma vão escuro entre dois prédios, separado da calçada por uma grade, formando um corredor escuro e tétrico. 

"O que tem ali?" ela perguntou.

"É um portal para outro mundo, Ana Clara" prontamente respondi.
 
Eu tenho essa atitude com crianças. Sempre que elas surgem com uma pergunta sobre algo comum na realidade eu invento algo bastante absurdo para explicá-las. Não, não é mentir. Mentir implica orientação para um resultado egoísta e antiético, já a minha é puramente lúdica e artística, então se trata de ficção. Lembro quando comecei a fazer isso pela primeira vez, com meu afilhado Leonardo que a época tinha seus 5 anos de idade. Uma vez ele apontou para uma loja de  piscinas com várias palmeiras e arbustos e perguntou o que era. Eu disse a ele que era um bosque mágico. "Que bobagem" ele me respondeu. 

O resultado com Ana Clara não foi muito diferente e ela riu como se eu estivesse fazendo piada com ela,  sabendo que a minha resposta era de "mentirinha". Ela não ficou impressionada com minha ficção, mas como sempre acontece eu mesmo fiquei. Alguns passos depois e aquela brincadeira que eu fiz tomou vida na minha mente: imagens de uma menininha que descobre que vãos entre prédios, sótãos e porões abandonados, portas e janelas em prédios velhos e em demolições, tudo isto são de fato portais para outros mundos, onde ela encontra novos seres, novas amizades e novos perigos.

No fim de 2021 também descobri um novo prazer: audiolivros. Tinha um preconceito muito grande com eles, pensava que não eram leitura de verdade. Bom, para ser preciso, de fato não o são: você está escutando uma história. Pensava que este escutar uma história fosse, de alguma maneira, menor ou menos válido que ler uma história. A experiência que tive com audiolivros demonstrou que pouco se perde no escutar, na verdade as distrações que podem existir em uma leitura e em uma audição são as mesmas: pensamentos que nada tem a ver com a história que se está lendo ou ouvindo. Como esse parênteses que fiz sobre audiolivros. 

O livro que estou escutando agora é The Restaurant at The End of The Universe e houve uma passagem que falava sobre um planeta onde príncipes iam em busca de iluminação através de aventuras como resgatar monstros de terríveis princesas - sim, uma inversão absurda, mas se você já leu algo de Douglas Adams sabe que é algo bem natural em seus livros. Esse menção sobre esse mundo me fez imaginar outra coisa: e se houvesse uma princesa guerreira que parte em uma jornada espiritual e que acaba também descobrindo outros mundos? O resultado dessa pergunta foi mais uma profusão de imagens fantásticas com detalhes que sinceramente ainda não consigo transformar em palavras. 

Estes dois eventos plantaram duas histórias em minha mente. Todo dia eu vejo cenas e mais cenas dessas histórias acontecendo, e eu gosto muito de sentí-las assim, vivas e pulsantes. O problema é que elas estão acontecendo de uma maneira interrompida, incompleta, são apenas pedaços de histórias que só aparecem para mim e para mais ninguém. Penso que elas só vão acontecer de verdade se de fato escrever elas e mostrar para mais pessoas. Aí elas também vão acontecer na mente de outras pessoas, com seus começos, meios e fins, e talvez elas possam gerar outras imagens, outras sensações, outras histórias. 

E o que isso tudo tem a ver com medo, afinal?

Acho que já escrevi aqui, ou então comentei com alguém, o quanto a escrita é algo empolgante e ao mesmo tempo perturbador em minha vida. Desde muito jovem livros e histórias fazem parte da minha vida e em algum momento escrever ficção e poesia foi algo que me encantou a ponto de virar um sonho. Sonhos sempre são um tanto problemáticos, a começar por sua natureza: existem e não existem ao mesmo tempo. 

Meu maior problema com o sonho de escrever sempre foi uma imensa falta de confiança baseada principalmente em valores estéticos e emocionais: não posso saber se o que escrevo é bom o suficiente par apresentar às pessoas e isso gera um medo enorme de ser ridicularizado. 

Sendo assim consigo perceber dois caminhos para o meu problema: ignoro completamente este sonho e me conformo com não escrever, evitando assim qualquer possibilidade de escrever algo ruim a ponto de ser ridicularizado; ou então abraço este sonho, com todos os riscos que existem nele, e colho todos os frutos, bons e ruins, que possa me oferecer. 

Fiquei muito tempo nesta bifurcação, experimentado ora um caminho, ora outro, sempre voltando atrás. Nos último anos, não só em virtude da pandemia que ainda assombra nosso planeta, tenho percebido como a vida é  a coisa mais preciosa que  tenho e como essas coisas que fazemos, como escrever, cuidar do jardim, cozinhar para a família, ajudar as pessoas...como isso tudo faz dela ainda mais preciosa. 
Penso que chegou o momento de seguir o caminho e não olhar mais para trás. Aceitar tudo que aconteceu e tudo que ainda pode acontecer, mesmo que eu não tenha a menor ideia do que está para acontecer. Creio que estar preparado para tudo não seja exatamente vencer as coisas que me acontecem, mas talvez estar aberto o suficiente para aceitá-las e aplicar o que elas ensinam. Acho que é isso. 

Provavelmente há  razões traumáticas para o meu medo, mas o fato é que ele tem origem numa raiz que é comum a todos os fenômenos. Não é possível ter certeza absoluta sobre coisa alguma, porque tudo está em constante transformação, mesmo que nossa mente produza padrões e mapas para que fiquemos um pouco mais tranquilos com relação a realidade que nos cerca. Perceber isso hoje faz com que eu abra um pouco mais o meu peito para a vida e o que há para se fazer nela.

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